2008/12/31


Upon the moon I fixed my eye,
All over the wide lea;
With quickening pace my horse drew nigh
Those paths so dear to me.

WILLIAM WORDSWORTH, U.K.,
in "Strange fits of Passion Have I Known", 1830




Na lua fixei o olhar,
E em todo o vasto campo;
Com passo vivo o meu cavalo aproximou-se
Dos caminhos que me são tão queridos.

2008/12/25


Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.


FERNANDO PESSOA, Portugal,
in "Cancioneiro", 1933

2008/12/23


Manger, rire, chanter, - pourtant tout est mystère!
Dans quel but venons-nous sur ce vieux monde, et d'où?
Sommes-nous seuls? Pourquoi le Mal? Pourquoi la Terre?
Pourquoi l'éternité stupide? Pourquoi tout?

Mais non! Mais non, qu'importe à la mêlée humaine?
L'illusion nous tient! - et nous mène à son port.
Et Paris qui mourra faisant trêve à sa peine
Vers les cieux éternels braille un Noel encore.

JULES LAFORGUE, França,
in "Noel Résigné", 1880




Comer, rir, cantar, - porém tudo é mistério!
Com que fim vimos a este velho mundo, e de onde?
Estamos sós? Porquê o Mal? Porquê a Terra?
Porquê a eternidade estúpida? Porquê tudo?

Mas não! Mas não, que importa à turba humana?
A ilusão prende-nos! - conduz-nos ao seu porto.
E Paris que há-de morrer dá trégua às suas penas:
Aos céus eternos apregoa outro Natal.

2008/12/15


We made a small society, at that odd hour; he and Jane hit it off, especially, vying in theories on the mechanical puzzle. She said, «I thought it might be like a subway turnstile - you needed a token.» It was a revelation to me, this wee-hour camaraderie of New Yorkers, and the city's genial way of folding my adultery into its round-the-clock hustle. JOHN UPDIKE, E.U.A., in New York Girl, 2000 Fizemos um pequeno convívio, àquela hora excêntrica; ele e Jane criaram uma simpatia, rivalizando especialmente com teorias sobre o enigma mecânico. Ela disse: «Pensei que podia ser como um torniquete do metro - precisávamos de uma ficha.» Foi para mim uma revelação, esta camaradagem dos novaiorquinos às primeiras horas da manhã, e a maneira genial como a cidade envolveu o meu adultério na sua actividade imensa e permanente.

2008/12/05


As cidades são muitas memórias íntimas. Atacarem-nas é atacarem-nos.


ALEXANDRA LUCAS COELHO, Portugal,
in "Viagens com bolso", jornal Público, 05.12.08

2008/12/02


Where the printing-works buttress a church
And the northern river like moss
Robes herself slowly through
The cold township of York,
More slowly than usual
For a cold, northern river,
You see the citizens
Indulging stately pleasures,
Like swans. But they seem cold.
Why have they been so punished;
In what do their sins consist now?

JON SILKIN, U.K.,
in "Astringencies", The Coldness, 1961




Onde o trabalho de impressão reforça uma igreja
E a norte o rio como musgo
Se cobre e lento percorre
O frio condado de York,
Mais lento do que o costume
Para um rio do norte, frio,
Vemos os cidadãos
Entregarem-se a prazeres magníficos,
Como cisnes. Mas parecem frios.
Porque foram tão castigados;
Em que consistem agora os seus pecados?

2008/11/23


The stars were public flowers, leaning tall stalks, watch-
ing; public flowers were stars.
The flowers were secretaries civil servants clerks inspect-
ing me, their stalks like legs of secretary birds.
The bird-beaked people, come to see and ask, were glare-
accusing mass of stars.


JEFF NUTTALL, U.K., in "In The Park", 1965




As estrelas eram flores públicas, altos caules inclinados,
- a observar; as flores públicas eram estrelas.
As flores eram secretárias funcionários públicos escrivães
- a inspeccionar-me, caules como pernas de serpentários.
As pessoas bico de pássaro chegavam viam e perguntavam,
fulminantes - acusadora massa de estrelas.

2008/11/09


O anúncio de Medvedev, na semana da eleição de Obama, de que a Rússia irá instalar os seus mísseis no enclave de Kalininegrado é um aviso, e um aviso sério. Ou Obama percebe os limites da tolerância da Rússia ao "cerco" do Ocidente e se coíbe de a provocar, ou recomeça uma hostilidade drástica não muito diferente da guerra fria. O auxílio técnico ao Irão e a próxima visita de Medvedev à Venezuela de Hugo Chávez são os primeiros sinais de que as coisas se deterioram. E se o Ocidente não inverter agora essa tendência, uma nova catástrofe se prepara para a América e a "Europa". Com a crise económica, a América "sobre-estendida" e a "Europa" desarmada, a Rússia do petróleo e do gás tem meios para criar o caos.

VASCO PULIDO VALENTE, Portugal,
in "Opinião", jornal Público, 9.11.2008

2008/11/08

fotografia ALEX BRANDON, Paris Match, 6 Nov 2008

No entanto, o que empresta à vitória de Barack Obama uma dimensão absolutamente inédita - e com um alcance tremendo para o futuro - é o facto de ele ter sido sufragado simbolicamente, de forma avassaladora, à escala universal. Se as eleições de 4 de Novembro tivessem sido não apenas americanas mas globais, Obama teria recebido porventura mais do que quatro quintos dos votos. Ele não é apenas um dos Presidentes mais votados na História recente americana, é também o Presidente do mundo - e, por isso, também, o nosso Presidente.

VICENTE JORGE SILVA, Portugal,
in jornal "SOL", 8.11.2008



Se fosse viva, Rosa Parks teria agora 95 anos e teria certamente votado Obama. A lendária activista que no dia 1 de Dezembro de 1955 se recusou a levantar-se no autocarro para dar o seu lugar a um branco, e depois lutou arduamente contra a segregação racial durante toda a sua vida, teria ficado muito contente com esta vitória e sentiria que era finalmente esta a América dos seus sonhos.

LAURINDA ALVES, Portugal,
in Jornal PÚBLICO, 07.11.2008

2008/11/07


Frente ao Apollo Theatre, milhares de O-ba-ma-O-ba-ma-O-ba-ma, alguns com tambores. Uma velha passa com duas rosas altas, radiante. Um matulão abraça uma mulher que lhe dá pela cintura. "Yessssss. Yessssss!" O chão está cheio de papéis "Yes, we can." As pessoas riem-se para pessoas que não conhecem como se esta noite as pessoas se passassem a conhecer de outra forma. "O-ba-ma-Oba-ma, baby!", suspiram duas raparigas abraçadas, atravessando a multidão.
É 1h23 da manhã. Um rapaz sobe para o tecto de uma paragem de autocarro e começa a gingar a anca. A multidão desata a dançar, dentro da paragem de autocarro e por toda a rua, dezenas de milhares de pessoas nos quarteirões em volta. Não há música. Esta é a música.

ALEXANDRA LUCAS COELHO, Portugal,
in "Viagens com bolso", Ípsilon, jornal Público 07.11.08

2008/11/05


Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this son of York;

WILLIAM SHAKESPEARE, U.K,
in "Richard III", acto I, cena I (1491)



Do Inverno do nosso descontentamento
fez Verão glorioso este filho de York;

2008/11/02


Sob a capa do "politicamente correcto", a América e a Europa não deixaram talvez nem o seu antigo racismo, nem a sua xenofobia; e continuam a execrar a homossexualidade e a lamentar a relativa "emancipação" das mulheres. Se Obama não ganhar (e espero fervorosamente que ganhe), a "tolerância" em que vivemos vai aparecer como a ilusão do século.

VASCO PULIDO VALENTE, Portugal,
in "Opinião", jornal Público, 2.11.2008

2008/10/23


Pat Kavanagh e Julian Barnes
Lisboa, 2007



One feeling at least grows stronger in me with each year that passes - a longing to see the cranes. At this time of the year I stand on the hill and watch the sky. Today they did not come. There were only wild geese. Geese would be beautiful if cranes did not exist.

JULIAN BARNES, U.K., in "The Silence"
The Lemon Table, 2004



Há pelo menos um sentimento que se torna mais forte em mim a cada ano que passa - o desejo de ver as garças. Nesta altura do ano subo à colina e observo o céu. Hoje elas não vieram. Só havia gansos selvagens. Os gansos seriam lindos se não existissem as garças.

2008/10/21


(o prazer de redescobrir J. M. G. le Clézio,
Prémio Nobel da Literatura, 2008)


Le rythme n’est pas forcément dans la civilisation; le retour vers le monde n’est pas un retour au primitivisme; le monde que s’est crée l’homme est aussi la «nature»: les réfrigérateurs, les automobiles, les avions, les ponts et les autoroutes, les immeubles de béton ne sont pas des décors; ne sont pas des miroirs. Ils sont vivants, ils ont leur existence propre, ils donnent autant qu’ils reçoivent. Les fleuves, les forêts, les chaînes de montagnes ne valent pas plus qu’eux. Sur la terre, qui existe, les inventions des hommes n’ont plus besoin d’être inventées. Elles appartiennent au dessin de l’univers.


J. M. G. le CLÉZIO, França,
in “L’infiniment moyen”, 1967




O ritmo não está forçosamente na civilização; o regresso ao mundo não é um regresso ao primitivismo; o mundo que o homem criou também é a «natureza»: os frigoríficos, os automóveis, os aviões, as pontes e as auto-estradas, os prédios de betão não são cenários; não são espelhos. Estão vivos, têm a sua existência própria, dão tanto quanto recebem. Os rios, as florestas, as cordilheiras de montanhas não valem mais do que eles. Sobre a terra, que existe, as invenções dos homens já não têm de ser inventadas. Pertencem ao desenho do universo.

2008/10/19


Dizem de si que são jovens de elevado potencial e acreditam que, com dinheiro, a juventude lhes será eterna. Estes lobos ávidos confundem informação com sabedoria, interesse com desejo, imagem com visão, alucinação com imaginação. Sofrem de todas as ignorâncias que falseiam a vida. Não sabem que o fracasso é o outro rosto do triunfo, que a doença é a irmã mais próxima da saúde, que o futuro é tão antigo como o passado, que a morte é o segundo nome da vida. Ignoram que o homem não é mortal porque morre, mas morre porque é mortal. Querem-se elegantes, mas desconhecem que o mais elegante dos gestos humanos é aquele com que fazemos passar os outros à nossa frente. São de direita, porque acham que ser isso é ser mais do que os outros. Falam do Valor e do Lucro como os teólogos falam da Graça e da Salvação. Pensam que aquilo em que acreditam é o «horizonte incontornável do nosso tempo». Vorazes, violentos, vis, vaidosos e vazios, são prepotentes com o seu poder e subservientes ao poder dos outros: escravos hoje para poderem ser senhores amanhã.
Agora, andam muito assustados com a crise - e não apenas pelas razões que nos assustam a todos. Para eles, é como se a armada invencível a que pertencem começasse, derrotada, a afundar-se sob um céu vazio de um deus vencido pelo diabo. A hubris gerou a Némesis.


JOSÉ MANUEL DOS SANTOS, Portugal,
in impressão digital, "Expresso" 18.10.2008

2008/10/10


se me vendam os olhos, eu, o arqueiro! acerto
em cheio no alvo porque o não vejo:
por pensamento e paixão,
ou porque foi tão sentido o vento a luzir nos botões dos salgueiros,
como se atirasse do outro lado do vento,
ou na solidão de um sonho,
ou como se tudo fosse o mesmo: flecha e alvo ―
e
cego
acerto em cheio:
porque não quero


HERBERTO HELDER, Portugal,
in "A Faca Não Corta o Fogo", 2008

2008/10/06



Of all the Souls that stand create -
I have elected - One -
When Sense from Spirit - files away -
And Subterfuge - is done -
When that which is - and that which was -
Apart - intrinsic - stand -
And this brief Drama in the flesh -
Is shifted - like a Sand -
When Figures show their royal Front -
And Mists - are carved away,
Behold the Atom - I preferred -
To all the lists of Clay!

EMILY DICKINSON, E.U.A.,
in "Poems", 1862


De todas as Almas que foram criadas -
Eu escolhi - Uma -
Quando o Sentido foge ao Espírito; -
E o Subterfúgio - é feito -
Quando aquilo que é - e aquilo que foi -
Separados - intrínsecos - se erguem -
E este breve Drama da carne -
Se escoa - como Areia -
Quando as Figuras mostram a Fronte real -
E as Brumas - se desmancham,
Fixai o Átomo - que eu preferi -
Às listas todas do Barro!

2008/10/01


Se no princípio tiverem algumas dificuldades, se lhes acontecer algum pequeno desastre, não desistam nem desanimem. Depois do livro de cozinha o melhor mestre é a prática. Julgo ainda que o meu livro lhes proporcionará alguns momentos de alegria, pois a boa cozinha concorre para existir o bom humor na família. Os homens ficam pelo "beicinho" se, depois de um dia de intenso trabalho, as suas mulheres lhes fizerem servir um jantar apetitoso e bem apresentado. Não se esqueçam que a apresentação desempenha papel importantíssimo. Não basta saber grelhar uma boa carne, assar um bom peixe ou fazer um bolo muito fofo. É indispensável saber enfeitar um peixe, colocar uma carne na travessa e quais os acompanhamentos que lhes são dados. É imprescindível saber armar uma maionese e tornar os bolos apetecíveis. É preciso gostar antes de comer, para depois saborear com admiração...


BERTHA ROSA-LIMPO, Portugal,
in "O Livro de Pantagruel", 1947

2008/09/20


«Os nossos líderes nacionais estão a enviar os nossos filhos para o Iraque para uma tarefa que vem de Deus... é que há um plano e esse plano é um plano de Deus.» Esta frase não é de Bin Laden. Um amigo chamou-me a atenção: está no New York Times, e foi proferida por Sarah Palin, candidata conservadora à vice-presidência dos Estados Unidos.......................................... .................................................................................................................................................................Já não bastava saber-se que a candidata só tem passaporte desde há um ano, o que implica que não conhece o mundo. Mas travestir uma discussão da esfera política para a esfera do religioso é um precedente perigoso. Perigoso para o Ocidente e para a democracia, que não deve ser confundida com uma opção religiosa contra alguém. É que, numa discussão religiosa, há dificuldade em distinguir um fundamentalista islâmico de um fanático cristão, e nós, politicamente, nada temos a dizer sobre tais discussões.


LUÍS CAMPOS E CUNHA, Portugal,
in jornal “Público”, 19.09.2008

2008/09/18


What's to be done in this world? Either face out the reality, fight with it, resignedly or heroically accept to suffer or struggle. Or else flee. In practice even the strongest heroes do a bit of fleeing ― away from responsibility into deliberate ignorance, away from uncomfortable fact into imagination. Even the strongest.


ALDOUS HUXLEY, U.K.,
in "After the Fireworks", 1930





O que se pode fazer neste mundo? Enfrentar corajosamente a realidade, lutar com ela, aceitar sofrer com resignação ou lutar heroicamente. Ou então fugir. Na prática até os heróis mais fortes praticam um pouco a fuga ― fogem da responsabilidade para a ignorância deliberada, do facto incómodo para a imaginação. Até os mais fortes.

2008/09/03


― And what does she look like?
― She's an angel.
― That's Blanca, that's the one.
― Is she blond?
― No, she's dark-haired, like me.
― A brunette.
― Well, I don't know about that.
― You just said she was.
― Yeah, I just don't like to hear my sister talked about that way.


MIRANDA JULY, U.S.A,
in "No One Belongs Here More Than You", 2007




― E como é ela?
― É um anjo.
― É a Blanca, é essa.
― É loura?
― Não. Tem cabelo escuro, como eu.
― É morena.
― Bom, isso já não sei.
― Acabaste de o dizer.
― Pois, mas não gosto de ouvir falar assim da minha irmã.

2008/08/26


It is noble to die of love, and honourable to remain un-
cuckolded for a season.
And she speaks ill of light women,
and will not praise Homer
Because Helen's conduct is "unsuitable".


EZRA POUND, U.S.A.,
in "Homage to Sextus Propertius", 1919



Nobre é morrer de amor, e honroso não ser en-
cornado por um tempo.
E das mulheres levianas ela fala mal,
e não exalta Homero
Porque é "imprópria" a conduta de Helena.

2008/08/15


A glória é como uma terrível catástrofe,
pior que a casa incendiada; enquanto
se abate a trave-mestra, o fragor
da destruição repercute-se cada vez mais depressa;
e tu contemplas tudo aquilo, inane
testemunha da danação.

Como uma bebedeira a glória devora
a casa da alma, revela que trabalhaste
para coisa pouca: para ela ―
ah, queria que esse beijo traiçoeiro nunca tivesse
molhado a minha face: queria
fundir-me, só, para sempre, na obscuridade, na noite.



HERBERTO HELDER, Portugal,
"Glória ― Malcolm Lowry", 1993

2008/07/26


São hoje seis dias corridos do mês de Julho de 1866.
E eu tenho frio.
Estou na aldeia. A chuva estaleja nas vidraças e o vento assobia nos vigamentos. Os cabeços dos montes escondem-se nas névoas que vêm descendo, como em Janeiro, e se desfazem em aguaceiros glaciais. Agora deponho a pena para espirrar. Anuncia-se-me a décima quarta bronquite desta quadra de zéfiros, rouxinóis e flores.
Aqui estou, pois, numa terra onde não há estradas, nem gente, nem Verão. Moscas há mais que as da praga. Eis-me constituído um faraó desta canalha.

CAMILO CASTELO BRANCO, Portugal,
"Cousas Leves e Pesadas", 1866

2008/07/07


Pobres e minúsculas ilhas da solidão, coroadas de cagarros e de nuvens, onde a vida humana ainda tem, de quando em quando, o sabor dos primeiros dias da criação do mundo... Das espessuras oníricas da minha gaveta de bordo sonho-me corsário ou mercador. Abordamos a Porto Santo em pleno quarto de alva. Já se adivinha na escuridão do calado do paquete um vago livor de dia. O mar é tinta de escrever, mas já a ilha se adivinha abrupta, compacta, a uns quinhentos metros da escada do portaló.

VITORINO NEMÉSIO, Portugal,
in "Primeiro Corso", 1946

2008/06/27


In the Beginning the Earth was an infinite and murky plain, separated from the sky and from the grey salt sea and smothered in a shadowy twilight. There were neither Sun nor Moon nor Stars. Yet, far away, lived the Sky-dwellers: youthfully indifferent beings, human in form but with the feet of emus, their golden hair glittering like spiders’ webs in the sunset, ageless and unageing, having existed for ever in their green, well-watered Paradise beyond the Western Clouds.
On the surface of the Earth, the only features were certain hollows which would, one day, be waterholes. There were no animals and no plants, yet clustered round the waterholes there were pulpy masses of matter: lumps of primordial soup – soundless, sightless, unbreathing, unawake and unsleping – each containing the essence of life, or the possibility of becoming human.

BRUCE CHATWIN, U.K., in “The Songlines”, 1987





No Princípio a Terra era uma planície infinita e sombria, separada do céu e do salgado mar cinzento e oculta num crepúsculo vago. Não havia Sol nem Lua nem Estrelas. Porém, muito longe, viviam os Habitantes do Céu: seres com a indiferença da juventude, humanos na forma mas com pés de avestruz e cabelos dourados refulgindo ao pôr-do-sol como teias de aranha, sem idade e sem envelhecer, existindo desde sempre no seu Paraíso verde, bem regado, para lá das Nuvens Ocidentais.
Na superfície da Terra, as únicas particularidades eram certas covas que, um dia, seriam poços de água. Não havia animais nem plantas mas, agrupadas em volta dos poços de água, havia massas de matéria suculenta: grumos de sopa primordial - silenciosos, cegos, sem respirar, inconscientes e vigilantes - cada um contendo a essência da vida ou a possibilidade de se tornar humano.


2008/06/13


Ha socegos do campo na cidade. Ha momentos, sobretudo nos meio-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom somno.

Bem sei: se ergo os olhos, está deante de mim a linha sordida da casaria, as janellas por lavar de todos os escriptorios da Baixa, as janellas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tam suave a luz que doura tudo isto, tam sem sentido o ar calmo que me involve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha villa de provincia onde o commercio é um socego.

FERNANDO PESSOA, Portugal,
in "Livro do Desassossego", 1933

2008/06/07


They doped the girls because it worked. East German swimmers won gold medals everywhere, the women especially. Not that Andrea had got to that level. When the Berlin Wall came down and the scandal broke, when they put the trainers, doctors, bureaucrats — the poisoners — on trial, her name wasn’t even mentioned. In spite of the pills, she hadn’t made the national team. The others, the ones who went public about what had been done to their bodies and their minds, at least had gold medals and a few years of fame to show for it. Andrea had come out with nothing more than a relay medal at some forgotten championship in a country that no longer existed.

JULIAN BARNES, U.K., “East Wind”,
in “The New Yorker” May 19, 2008




Eles drogavam as raparigas porque dava resultado. Os nadadores da Alemanha de Leste ganhavam medalhas em toda a parte, sobretudo as mulheres. Não que Andrea tivesse atingido esse nível. Quando o Muro de Berlim caiu e o escândalo rebentou, quando levaram a tribunal os treinadores, médicos, burocratas – os envenenadores –, o nome dela não foi sequer mencionado. Apesar das pílulas, não chegara à selecção nacional. As outras, as que tornaram público o que lhes tinha sido feito ao corpo e ao espírito, tinham ao menos medalhas de ouro e alguns anos de fama para mostar. Andrea acabara sem nada a não ser uma medalha de estafetas num campeonato esquecido dum país que já não existia.

2008/06/06


For the first time in history, a sizable and growing number of U.S. combat troops are taking daily doses of antidepressants to calm nerves strained by repeated and lengthy tours in Iraq and Afghanistan. The medicines are intended not only to help troops keep their cool but also to enable the already strapped Army to preserve its most precious resource: soldiers on the front lines. Data contained in the Army's fifth Mental Health Advisory Team report indicate that, according to an anonymous survey of U.S. troops taken last fall, about 12% of combat troops in Iraq and 17% of those in Afghanistan are taking prescription antidepressants or sleeping pills to help them cope.

MARK THOMPSON,
in "TIME" June 6, 2008




Pela primeira vez na história, um número crescente e muito elevado das tropas americanas em combate toma diariamente doses de antidepressivos para acalmar os nervos cansados dos giros demorados e repetidos no Iraque e no Afeganistão. Os medicamentos destinam-se não só a ajudar as tropas a manter a calma, mas também a permitir que o exército já desfalcado conserve o seu recurso mais precioso: soldados na linha da frente. Dados incluídos no quinto relatório da Equipa Consultora de Saúde Mental do Exército indicam que, segundo um estudo anónimo sobre as tropas americanas levado a cabo no passado Outono, cerca de 12% das tropas que combatem no Iraque e 17% das que se encontram no Afeganistão tomam antidepressivos ou comprimidos para dormir, receitados para as ajudar a enfrentar a situação.

2008/05/31





Sometimes, but only for a moment, I saw a faint solitary figure with a Rosa veiled face, and carrying a faint torch, flit among the dancers, but like a dream within a dream, like a shadow of a shadow, and I knew by an understanding born from a deeper fountain than thought, that it was Eros himself, and that his face was veiled because no man or woman from the beginning of the world has ever known what love is, or look into his eyes, for Eros alone of divinities is altogether a spirit, and hides in passions not of his essence if he would commune with a mortal heart. So that if a man love nobly he knows love through infinite pity, unspeakable trust, unending sympathy; and if ignobly through vehement jealousy, sudden hatred, and unappeasable desire; but unveiled love he never knows.

WILLLIAM BUTLER YEATS, Irlanda,
in “Rosa Alchemica”, 1895




Algumas vezes, mas só por um momento, vi uma figura solitária e vaga, com o rosto velado da Rosa, que transportava um archote de luz fraca e passava lesta entre os dançarinos, mas como sonho dentro de um sonho, sombra de uma sombra; e soube de fonte mais funda do que aquela que o pensamento conhece, que era o próprio Eros, e que tinha o rosto velado porque nenhum homem ou mulher desde o início do mundo soube alguma vez o que é o amor, ou olhou nos seus olhos, porque das divindades só Eros é inteiramente espírito e se esconde em paixões de essência alheia à sua, quando quer comungar com um coração mortal. Por isso, quando um homem ama com nobreza conhece o amor através da compaixão infinita, da confiança indizível, da afinidade eterna; se ama sem nobreza conhece-o através do ciúme intenso, da aversão repentina e do desejo insaciável; mas não conhece nunca o amor sem véu.

2008/05/22






«Os negros sul-africanos não matam os imigrantes moçambicanos e zimbabueanos por distantes sentimentos de isolamento incutidos pelo Apartheid. Os negros sul-africanos matam os negros moçambicanos e zimbabueanos por motivos mais prosaicos. Acham que estes ficam com as suas casas e usurpam os seus empregos. Por fim, resta dizer que, comparada com a brutalidade dos ataques na África do Sul, a xenofobia europeia, que se disfarça com discursos, que se artilha de argumentos, que usa botões de punho, que muitas vezes tem representação parlamentar, que mói, mas raramente mata, parece aceitável, quase inócua. Não é.»

in http://www.ana-de-amsterdam.blogspot.com/
20.05.2008

2008/05/18


She was a very old lady,
I never saw her again.

EZRA POUND, U.K.,
in "Langue D'Oc , VIII, Ritratto", 1915




Ela era muito velha,
Eu nunca mais a vi.

2008/05/14




«A lot of people try to think up ideas. I’m not one. I’d rather accept the irresistible possibilities of what I can’t ignore.» He added: «Anything you do will be an abuse of somebody else’s aesthetics. I think you’re born an artist or not. I couldn’t have learned it, and I hope I never do because knowing more only encourages your limitations.»

ROBERT RAUSCHENBERG, U.S.A., 1925-2008,

The New York Times, 14.05.2008

«Há uma data de gente que tenta arranjar ideias. Eu não. Prefiro aceitar as possibilidades irresistíveis daquilo que não posso ignorar.» E ainda: «O que quer que façamos será um abuso da estética do outro. Acho que ou se nasce artista ou não. Eu não podia ter aprendido isso e espero nunca aprender, porque saber mais só estimula as nossas limitações.»


2008/05/08


My parents kept me from children who were rough
Who threw words like stones and who wore torn clothes.
Their thighs showed through rags. They ran in the street
And climbed cliffs and stripped by the country streams.

I feared more than tigers their muscles like iron
Their jerking hands and their knees tight on my arms.
I feared the salt coarse pointing of those boys
Who copied my lisp behind me on the road.

They were lithe, they sprang out behind hedges
Like dogs to bark at my world. They threw mud
While I looked the other way, pretending to smile.
I longed to forgive them, but they never smiled.

STEPHEN SPENDER, U.K., 1932




Os meus pais protegiam-me das crianças que eram rudes
Que atiravam palavras como pedras e andavam rotas.
Via-lhes as coxas através dos rasgões. Corriam pela rua
Escalavam penhascos e despiam-se nas ribeiras.

Mais do que tigres eu temia os músculos de aço
As mãos bruscas e os joelhos que me apertavam os braços.
Temia o apontar indecente e vulgar desses rapazes
Que imitavam o meu ciciar na estrada atrás de mim.

Eram ágeis, saltavam de trás das sebes
Como cães a ladrar ao meu mundo. Atiravam lama
Enquanto eu olhava para outro lado, fingindo que sorria.
Ansiava por lhes perdoar, mas eles nunca sorriam.

2008/05/05


There is never enough air
There is never wide enough space
There is never blue enough for heaven
There is never white enough for light
There is never a three-dimensional sheet of paper
Where words may climb and dive
And praise loop the loop of aeroplanes

STEPHEN SPENDER, U.K.
in "Variations on my life", 1934




Nunca há ar suficiente
Nunca há espaço suficientemente largo
Nunca há suficiente azul para o paraíso
Nunca há suficiente branco para a luz
Nunca há uma folha de papel tridimensional
Onde as palavras possam escalar e mergulhar
E a veneração enlaçar o voo em espiral das aeronaves.

2008/05/03









To look down on my life
That was my life
False social puppet painted with false mouth
Yet in that mouth this voice
That is not quite all death
But its own truth witnessing its justice with living breath

STEPHEN SPENDER, U.K.,
in "Variations on my life", 1934



Baixar os olhos para a minha vida
Essa foi a minha vida
Falso fantoche social pintado de boca falsa
Mas nessa boca esta voz
Que não é toda morte
Mas sua própria verdade que vê sua justiça com vivo respirar

2008/04/25
















Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN,
"25 de Abril", Portugal, 1974

2008/04/23


Gonzalo. Here is everything advantageous to life.
...................
That our garments, being, as they were, drench'd in the sea, hold, notwithstanding, their freshness and glosses, being rather new-dy'd, than stain'd with salt water.

WILLIAM SHAKESPEARE, U.K.
"The Tempest", Act Two, Scene I (1613)





Gonzalo. Aqui tudo favorece a vida.
...................
E nossas vestes que, em verdade, se encharcaram no mar, conservam, não obstante, frescura e polimento, tingidas de nova cor e sem manchas de água salgada.

2008/04/10


We were suspicious of violins
and, though a magnolia tree
in Dulwich Park held out
white lilies to us, we turned
away; we hurried past
children playing on grass
and admired only mongrel dogs
with tough appetites: it was
a lonely place between splayed thighs.

EDWIN BROCK, U.K., in “Diary Entry”, 1965




Desconfiávamos de violinos
e, embora uma magnólia
em Dulwich Park nos oferecesse
lírios brancos, virávamos-lhe
as costas; passávamos a correr
pelas crianças que brincam na relva
e só admirávamos cães rafeiros
com apetites desordeiros; era
um lugar solitário entre coxas oblíquas.

2008/04/06




Des rêves! Toujours des rêves! Et plus l'âme est ambitieuse et délicate, plus les rêves s'éloignent du possible. Chaque homme porte en lui sa dose d'opium naturel, incessamment sécrétée et renouvelée, et, de la naissance à la mort, combien comptons-nous d'heures remplies par la jouissance positive, par l'action réussie et décidée?

CHARLES BAUDELAIRE, França, Le Spleen de Paris, 1865, in "L'Invitation au Voyage"



Sonhos! Sempre sonhos! E quanto mais a alma é ambiciosa e delicada, mais os sonhos se afastam do possível. Cada homem traz em si a sua dose de ópio natural, incessantemente segregada e renovada e, do nascimento até à morte, quantas horas podemos contar repletas de fruição positiva, de acção conseguida e determinada?



2008/04/05


As the weeks go by, everyone's deadlines, meetings and doctor's appointments are sun-bleached into oblivion. The idea of work only seems to come up in phrases like «Man, I've got to get out of work early today.»

UNIQLO Magazine, NY


À medida que as semanas passam, para toda a gente prazos, reuniões e idas ao médico ficam branqueados pelo sol e caem no esquecimento. A ideia de trabalho parece surgir unicamente em frases como «Pá, hoje tenho que sair mais cedo do trabalho.»

2008/03/29
















FLORENT, New York City

2008/03/27


Çerra a serpente os ouuydos
aa voz do encantador,
eu nam, e aguora com dor
quero perder meus sentidos.

Os que mais sabem do mar
fogem d'ouuir as sereas;
eu nam me soube guardar:
fuy-vos ouuir nomear,
fyz minh'alma e vida alheas.

FRÃÇISCO DE SAA, Portugal, Esparça, c. 1488

2008/03/23

2008/03/19




Passa no sopro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.

Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?

Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar.

FERNANDO PESSOA, Portugal,
in "O Peso de Haver o Mundo", 19-5-1932

2008/03/15