2016/01/01

 
 

E no meio de tantos perigos, constantes e flagrantes, era necessário comer! Ah! Comer - que portentosa empresa para nossos Pais veneráveis! Sobretudo desde que Adão (e depois Eva, por Adão iniciada) tendo provado os deleites fatais da carne, já não encontravam sabor, nem fartura, nem decência, nos frutos, nas raízes, e nos bagos do tempo da sua Animalidade. Certamente, as boas carnes não faltavam no Paraíso. Delicioso seria o salmão primitivo - mas nadava alegremente nas águas rápidas. Saborosa seria a galinhola, ou o faisão rutilante, nutridos com os grãos que o Criador considerara bons - mas voavam nos céus, em triunfal segurança. O coelho, a lebre - que fugas ligeiras no mato cheiroso!... E nosso Pai, nesses dias cândidos, não possuía o anzol nem a seta. Por isso, sem cessar rondava em torno das lagoas, nas ribas do mar, onde casualmente encalhava, boiando,  algum cetáceo morto. Mas esses achados de abundância eram raros - e o triste casal humano, nas suas marchas famintas pela borda das águas, só conquistava, aqui e além, na rocha ou na areia revolta, algum feio caranguejo em cuja dura casca os seus beiços se esgaçavam. Essas solidões marinhas andavam também infestadas por bandos de feras esperando, como Adão, que a vaga rolasse os peixes vencidos em borrasca ou batalha. E quantas vezes, nossos Pais, já com a garra cravada numa posta de foca ou golfinho, fugiam desconsoladamente, sentindo o passo fofo do horrendo espeleu, ou o bafo dos ursos brancos, bamboleando pelo branco areal, sob a branca indiferença da Lua!

JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS, Portugal,
em  Adão e Eva no Paraíso, "Contos", 1897

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